sábado, 26 de setembro de 2009

Memorial

MEMÓRIAS DE UM NEPHELIBATA

Nasci no dia 30 de março de 1980, morei os quatro primeiros anos de minha vida na zona urbana da cidade de Jaguaruana, mas logo depois meus pais se mudaram para um pequeno distrito da cidade, chamado de Curralinho da Barra. Lembro bem do meu desejo de ir à escola. Desejava que chegasse o meu momento, pois com apenas cinco anos eu não poderia ser aceito, porque a matricula só era permitida aos seis.

Ao conversar com meus colegas que já estudavam eles reclamavam muito por causa das atividades, porém um deles me dizia que o interessante em ir a escola era o fato de aprender a ler, pois ele gostava muito de histórias em quadrinhos e como sua mãe trabalhava para um fazendeiro do lugar, e quando a mulher de seu patrão ia passar os finais de semana no sitio, levava muitas revistinhas em quadrinhos para o filho dela.

Quando ele me mostrava as gravuras do Tio Patinhas, Pateta, Mickey e Donald, aquilo me fazia viajar num mundo mágico. Como eu não sabia ler, ficava tentando entender as histórias a partir das gravuras, mas eis que chegou meu primeiro dia de aula, a empolgação era tremenda, meus pais com muito sacrifício providenciaram todo o material escolar, inclusive uma caixa de lápis de cor, este último aparato me fazia viajar no mundo das cores, pois eu sentia uma vontade enorme de pintar, porém me frustrava por não saber criar desenhos complexos, já que ficava apenas no quesito casinhas e árvores.

No dia em que minha professora passou a me ensinar o alfabeto, sua preocupação era que eu e o restante da turma pelo menos aprendêssemos no mínimo o nome de cada letrinha e sua pronúncia, caso algum colega não conseguisse, era motivo para chacota da turma. Ao final, terminei a alfabetização e não aprendi a ler, no máximo, aprendi a escrever meu nome, mas sem saber ao certo o quê escrevia, pois tudo acontecia por mera repetição.

No ano seguinte iniciei minhas aulas com uma professora bastante conhecida da comunidade por fazer com que alguns alunos de sua turma saíssem escrevendo alguma coisa e lendo frases soltas. Ao primeiro contato com a professora, percebi porque ela era tão amada pelos seus ex-alunos. Ela tinha uma maneira diferente de ensinar, usava métodos diferentes para se chegar ao mesmo objetivo, que era fazer com nós escrevêssemos. Quando a antiga simplesmente exigia que escrevêssemos o que ela colocava no quadro e logo reproduzíssemos nosso pensamento.

Conclui a 1ª série e não aprendi a ler, aquilo me causava uma tremenda vergonha. Iniciei a segunda série e eis que dou de cara com minha professora da alfabetização novamente nos meus calcanhares. Recordo-me bem o primeiro dia de aula, ela questionou a professora anterior por ter promovido eu e outros colegas a 2ª série, aquilo me deixou extremamente irritado e constrangido, pois eu sabia que ninguém na sala conseguia ler corretamente e no meu caso era necessário só um pouquinho de atenção da parte dela para me ensinar a formar as silabas, ao invés de querer que eu respondesse aos questionários que ela passava com base no texto que ela lia.

Recordo-me bem de uma cena de santa ignorância desta professora, o texto estudado era uma fábula que não me recordo o autor. Ela fez a leitura em voz alta e em seguida pediu para que a acompanhássemos, ao final escreveu na lousa um questionário acerca do texto, eu não sabia ler nada, mas entendi toda a história, e era capaz inclusive de recontá-la se fosse o caso, coisa que fiz ao chegar em casa, pois contei pra minha mãe.

Olhei para aqueles risquinhos que fiz na folha em branco, demorei um pouco e me dirigi até a professora para perguntá-la, o que era que a primeira questão estava pedindo? A figura sisuda me respondeu de uma forma seca e grosseira, você não sabe ler não? E eu respondi bestamente, sei, mas é porque não estou entendendo o que à questão está pedindo. A partir do momento que ela me dizia o que queria com a questão eu já conseguia formular a resposta, porém não sabia escrevê-la. E isso acontecia com todas as questões, lembro que ela se indignava com o fato da minha pessoa não consegui escrever o que formulava em pensamento. Porém nunca fez nada para mudar a situação na qual eu me encontrava.

Antes do final daquele ano me mudei de cidade, indo agora para Areia Branca, cidade potiguar, e não fui matriculado, fiquei o restante do ano sem estudar, pois não havia vagas no bairro onde passei a morar. No ano seguinte retornei com minha família para Jaguaruana, passando a morar agora na zona urbana, iniciei o ano letivo, mas com uma semana de aula, contraí hepatite tipo “A”, realizei um tratamento de três meses, e durante o processo de incubação do vírus, a diretora da escola se recusou a me aceitar, porque eu representava perigo para as outras crianças.

Então no ano de 1990 eu iniciei a 2ª série, e foi justamente neste ano e nesta série que tive um contato maior com a leitura, pois a minha professora percebendo minha necessidade em aprender a ler, passou a exigir a minha leitura individual ao final de cada aula, e ia mostrando como as palavras se formavam e como se dava os sons da junção das letras, e sem falar que eu expressava um desejo enorme em dominar a leitura. Ainda me lembro do conteúdo dos livros de estudos sociais, história do Brasil envolvendo o processo de descobrimento, exploração da colônia e como de costume da época período de culto aos heróis da nação, D. Pedro I, Princesa Isabel, Tiradentes entre outros.

Como eu detinha um desejo maior por ciências e estudos sociais, foi justamente com o livro didático que o processo de leitura em minha vida se deu. Durante aquele ano aprendi a dominar a leitura por volta do mês de junho, e durante o mês de julho respondi todo o livro de ciências. Ao retornar das férias fui todo empolgado até a professora e mostrei as atividades, todas resolvidas, ela me passou o maior carão dizendo que eu tinha que apagar tudo aquilo que havia feito no livro, pois as atividades deveriam ser feitas quando ela mandar.

A partir do momento que aprendi a ler, passei a ser na época, um dos que se destacavam na turma e assim nos anos que se seguiram. Porém ao iniciar o Ensino Médio, passei a apresentar dificuldades nas disciplinas de cálculo, e como todo bom adolescente, a demonstrar desinteresse pelo o quê me era ensinado, despertando desejo em aprender o quê me era ensinado, somente ao cursar a 3ª série, quando na ocasião me mudei para Fortaleza e lá passei a estudar no Colégio Estadual Liceu do Ceará.

Foi justamente a partir deste último ano de estudos secundários que me deparei com a leitura direcionada, pois me preocupei em ler os livros que seriam cobrados no vestibular. E dessa maneira passei não só a ler os livros, mas a fazer estudo das obras associando-as com os períodos históricos e com suas características de movimento literário, inclusive a traçar paralelos entre o conteúdo das obras e o comportamento das sociedades das épocas em que foram escritas, e muitas vezes com a realidade na qual nos encontrávamos, já que algumas obras transpassam a época em que foram escritas.

Como não fui aprovado no vestibular daquele ano, 1999, continuei em Fortaleza, mas agora freqüentando cursinho pré-vestibular, e para custeá-lo, agora dava aula particular de reforço para alunos de Ensino Fundamental. E nos momentos de estudo continuava lendo e tentando interpretar, Camões, Fagundes Varela, Álvares de Azevedo, Castro Alves, Bernardo Guimarães, Adolfo Caminha, Domingos Olímpio, Machado de Assis, Lima Barreto, Mário de Andrade e Graça Aranha.

Com tanto esforço fui premiado com a aprovação no vestibular daquele ano para Letras no núcleo da UECE de Limoeiro do Norte, podendo agora retornar para minha cidade e para minha família. Ao iniciar a faculdade, a rotina passou a ser muito mais puxada com relação às leituras e análises literárias, pois eu me deliciava com os textos e logo recebi o convite para trabalhar como radialista em uma pequena emissora local, hoje a extinta Jaguar FM – 98,1. Meses depois, partindo da dona da emissora, me foi dada a oportunidade de lecionar em um colégio do município, sendo isso possível por conta da influência que ela tinha por ser nora do prefeito da época, e como eu estava reduzindo meu tempo na emissora devido a universidade, ela resolveu me dar a oportunidade de iniciar minha carreira no magistério.

Se bem me lembro, eram aproximadamente 12: 40m, quando preparei os livros e alguns rabiscos que fiz ensaiando o primeiro plano de aula. Encaminhei-me para colégio Gerardo Correia Lima, pedalada a pedalada, encurtando os passos daquela, que seria minha primeira experiência, meu primeiro contado com alunos. Às 13:10m, do dia 03 de abril de 2001, nascia mais um professor numa pequena e pacata cidade do interior do Ceará, chamada Jaguaruana.

Meu primeiro contado com os antigos mestres, que agora seriam meus colegas de trabalho, não foi muito agradável, me olharam inclusive com desdém. Aquilo foi algo que até hoje não entendi o porquê. Porém entre aqueles que ali se encontravam estava meu professor de Língua Portuguesa da antiga quinta série. Ele veio até mim, abraçou-me e levou-me a todas as salas do colégio, me apresentando como um dos novos professores que surgia na cidade, mostrando-me inclusive como um de seus troféus conquistado durante uma vida dedicada a educação e a formação de tantos.

Em seguida, segui até minha sala, onde tive meu primeiro contato com os alunos. Durante aquele instante tive a certeza de que ali era o meu lugar, pois senti um prazer enorme em repassar o que havia estudado e o conhecimento que havia em mim fluía de uma forma fascinante. Assim, passei a impressionar meus alunos com novas metodologias que trazia na bagagem, porém ainda me sentia muito inseguro no tocante ao controle da turma, pois para muitos da escola, ser professor era antes de tudo, apresentar domínio de sala, e assim, qualquer risada mais alta do que o comum ou qualquer algazarra me dava um frio na espinha.

Meses depois eu já era conhecido como um promissor professor de Língua Portuguesa, porém as portas não se abriram como eu desejava. Nunca entendi ao certo, não sei se pelo fato de ainda ser um universitário, e por está iniciando a faculdade aquilo me tornava um professor sem a devida experiência, necessitando conquistar a devida credibilidade, era como se eu precisasse fazer valer para alcançar o meu devido espaço enquanto profissional.

Ao final daquele ano, recebi uma proposta concreta, já que no colégio citado acima eu estava substituindo uma professora durante uma licença de saúde, e a proposta era de uma escola particular, enquanto a licença era numa escola pública. Aceitei a proposta e trabalhei nesta escola durante seis anos, de 2002 a 2008, saindo de lá para assumir um concurso público do município. Atualmente faço parte do quadro efetivo do município, estando cedido a Secretaria Municipal de Educação, para formação do Gestar II, e também, trabalho como professor temporário da rede estadual de ensino e sou professor do curso de Letras da Faculdade do Vale do Jaguaribe, onde leciono as disciplinas de Literaturas portuguesa, brasileira e cearense.

Afraudízio Soares, julho de 2009